quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

INFÂNCIA FORA DO JARDIM DO ÉDEN


Pela janela, com o olhar perdido no horizonte, eu vejo que a Justiça vagueia com seus olhos tapados com um lenço, e com a visão ausente de luz e, com a razão deturpada, a buscar inutilmente um local para aconchegar-se e fincar raiz para se estabilizar. Em vão os miseráveis clamam pela Justiça ou pela Morte. Esta, acostumada a seguir apenas os seus próprios caprichos, só se aproxima das pessoas quando melhor te apetece. E, muitas vezes ela se apresenta para as pessoas quando não mais as querem por perto. Nada faz demovê-la de suas viagens, e ela transita e se hospeda na vida dos homens e das mulheres conforme sua vontade. De personalidade egocêntrica e individualista, sente que em suas veias correm suavemente a liberdade plena de ir, vir e permanecer sem necessidade de passaporte e visto. Ela mesma é sua regra e, não há ninguém quem a possa importunar.
Olhando a paisagem pela janela da grande sala, cercada de computadores e outros aparelhos tecnológicos da vida contemporânea, frutos da engenhosidade e inteligência humana, vejo um terreno elevado coberto de gramas. Ah! Essa visão me remete ao tempo de minha infância. Aquela fase infantil mais saborosa em que me sentia protegido habitando no Jardim do Éden- ao menos era assim que me via, como um habitante deste jardim- entre as árvores frutíferas, extensões de terras gramadas e água fresca que a fonte me proporcionava. Conforme o ciclo da natureza, as árvores me presenteavam com suas frutas, que por mim eram colhidas para satisfação de meu corpo e de meu espírito. Nesse encanto, a vida corria inocente e fraternal, num tempo em que o Mundo não havia se apresentado diante de mim em sua verdadeira face, obscura e horrorosa, de miséria e de indigência, que marcou o despertar da outra fase da infância.
A recordação do Jardim do Éden, que numa localidade havia um barranco, que por estar coberto de gramas se tornava para as crianças uma pista de tobogã. Com um pedaço de papelão, na medida suficiente para sentar e segurar, na parte dianteira, as mãos eu e meus amigos de infância, escorregávamos velozmente, numa adrenalina que nos enchia de bem estar e felicidade. Ao chegar na planície, imediatamente subíamos para repetir essa aventura até ao esgotamento. Às vezes ficávamos a brincar até ao anoitecer, que nesse movimento terrestre a luz do sol se enfraquecia e permitia as trevas ocupar toda a extensão do Jardim do Éden.
Mas, o tempo é um senhor que se torna um fardo imposto pela necessidade humana de se organizar em sociedade. Os homens e as mulheres têm essa necessidade de organização de suas funções no grupo, de definição dos papéis a encenar e de seguir uma disciplina de vida, para que a convivência entre si, membros de uma mesma espécie e semelhança com o divino, seja possível.
E, retornando ao paraíso da primeira infância, eu recordo que num determinado momento de minha existência passei a ter ciência que o Jardim do Éden não era minha propriedade. Ela é uma pátria estrangeira; e não me pertencia e nem pertencia a minha família. Eu a habitava por concessão dado pelos seus verdadeiros proprietários: seres afortunados que exalavam perfumes que lhes davam características de seres divinos. E, foi uma experiência traumática ter que partir e, não ter mais a proteção e comodidades que este jardim me regalava. Não houve pecado original, como foi a história de vida do miserável Jó.
Essa terra que me regalou com ricas experiências alegres e prazerosas, de proteção e felicidade durante uma parte da fase infantil, se tornou uma saudade e um desejo de lá poder voltar e, enraizar-me em seu solo para me estabilizar em seu chão. Mas, a vida não me deu essa permissão. Uma vez que do Jardim do Éden se parte, não mais para ele se retorna.
No dia em que desse jardim fui retirado, desta terra que acreditei ser meu foi um duro golpe ao meu espírito infantil. E, a segunda parte dessa fase da vida irrompeu-se às minhas vistas. Se pudesse eu ataria meus olhos com o mesmo lenço que a Justiça a utilizou para não mais ver. Porém, esse direito não me foi concedido. Então, eu vi o que não desejava ver e, pisei um solo no qual não queria que meus pés tocassem. O sol me negou a sua luz e as árvores frutíferas recusavam-me presentear suas frutas. Nesse momento eu vi o Mundo e me angustiei. Desse dia em diante, Angústia me vem visitar quando sente saudades de mim. Com o passar do tempo, fui me adaptando às visitas dela em minha casa. Ela gosta de saber como anda minha história e como vou vivenciando os dias e os anos de minha existência.
E, como não havia como desviar o olhar do Mundo, nele eu descobri que pessoas vivem privadas das benesses e comodidades regaladas pelo Jardim do Éden. Eu vi que há crianças que choram por não terem pão para saciar a fome; que há crianças violentas, que xingam, agridem e roubam objetos alheios; que há crianças que agem com astúcias para angariar vantagens sobre as demais. Essa era a nova visão da infância que se apresentava a mim. Provocou em minha pessoa uma crise que não mais me deixou.
Eu vi que há pessoas que abrigam seus corpos miseráveis sob casas de madeiras arruinadas, em companhias de bichos peçonhentos e insetos como ratos, baratas, carrapatos, moscas, mosquitos, e outras mais. Eu também vi que a exploração do ser humano sobre o outro é real e, em alguns casos sem limites para atitudes escrupulosas motivadas pela valorização do poder e da moeda sobre todas as coisas. E, vi que o ser humano é capaz de desenvolver um espírito de frieza para retirar a vida de outrem. E, após a ver tantas outras coisas mais, descobri que não é mais possível retornar ao Jardim do Éden. Eu desejei retornar, mas seus portões estão fechados para não mais se abrir aos que de lá já partiram.
Todavia, o Mundo recebe fragmentos do Jardim do Éden. Quando há ventanias e tempestades esses fragmentos ora por meio do vendaval, ora pelas correntezas d’águas são transportadas até nós, que habitamos em outras terras. Elas são as alegrias que experimentamos em alguns momentos de nossa existência, mesmo fora desse jardim fértil. Em meio as trevas que há no Mundo, há brilhos de luz que vem das grades dos portões do Jardim do Éden e, reluzindo algumas partes ao outro lado, se implantam no interior do espírito humano. Esses brilhos de luz, como faíscas, acendem uma chama de sentimento intenso. Por isso, experimentamos o amor. Assim, eu vi e descobri que mesmo aqui, no Mundo eu vivencio também amor entre tantas visões aterrorisadoras.
E, assim pela janela eu vi minha própria infância, o fundamento de toda minha existência.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

VERDADES DO PROFETA GENTILEZA


Quando se passa de ônibus pelo viaduto do Caju, na zona portuária do Rio de Janeiro, encontra-se em suas colunas diversas pinturas de murais com os escritos de diversas palavras, que da altura das janelas dos automóveis são visíveis. Num primeiro momento, essas palavras parecem se encontrar desorganizadas e confusas. Mas, observando com atenção, elas começam a fazer sentido com frases que remetem a experiência de crença em Deus, como bondoso e criador, mas o mundo por ele criado tomado por tantas injustiças e maldades. Essas pinturas se tornaram patrimônio cultural, no qual a Prefeitura do Rio de Janeiro se tornou a responsável por sua conservação. E, o autor dessa obra ficou conhecido como Profeta Gentileza.

Profeta Gentileza! Ele andou por mais de 20 anos pelas ruas centrais das cidades de Niterói e Rio de Janeiro, como pregador andarilho aos transeuntes, aos passageiros nos ônibus e barcas e aos que com ele se encontravam por tantas esquinas e lojas. Ele caminhava transmitindo seus ensinamentos como se fosse um enviado de Deus. Assim ele mesmo acreditava ser: enviado pelo divino para instruir os seres humanos que gentileza gera gentileza. Com essa simples frase resumia sua mensagem. Num mundo em que o espírito humano se torna recrudescido e, as pessoas tomadas por frenética disputa entre si, as palavras do Profeta Gentileza se tornou um caminho alternativo, fugindo até mesmo da racionalidade da constituição gramatical, como a sua obra demonstra aos leitores.

Apesar das pinturas do Profeta Gentileza se encontrar no Rio de Janeiro, ele é natural de São Paulo, da cidade de Cafelândia, e em outra cidade paulista ele se despediu desse mundo, em Mirandópolis. Apesar do nome missionário de Gentileza, há diversas pessoas que afirmam que nem sempre era dessa forma que se comportava com as pessoas, e que costumava agir com estupidez e moralismo. Algumas mulheres e crianças dele fugiam de medo. Essa controvertida discussão de sua personalidade chegou aos bancos das universidades e nos editoriais de jornais fluminenses. Mas, interessante se dar conta que um homem, muitas vezes, descrito como louco e lunático pode ter muita lucidez se lhe der atenção às suas obras.

Em se tratando de mensagem religiosa, Profeta Gentileza retrata sua formação catequética. Reconhece Deus como Criador do universo e, que nós somos seus filhos e irmãos uns dos outros. Por conta disso, o ideal de vida para a humanidade seria a convivência fraterna, se apresentando gentis e agradecidos mutuamente. Deveríamos, neste caso deixar de lado o ódio e o rancor. E, em relação ao universo político e econômico, ele definia o capitalismo como o capeta, que deveria ser extirpado. Qualidades como ambição, ganância, competitivismo, hedonismo exacerbado, que vistas como desenvolvidas com a expansão do capitalismo eram condenadas com veemência por ele, que elas transportavam o mundo para sua ruína.

Para romper com o capitalismo, Profeta Gentileza acreditava que a mudança de atitude das pessoas seria fundamental. Entre os que atravessavam apressados as ruas dos centros do Rio e Niterói, Gentileza pregava a necessidade de serem gentis uns com os outros, e deixarem de manter feição recrudescida dos rostos e adotarem um semblante mais sereno. Com essa mudança, ele acreditava que a fraternidade entre as pessoas evoluiria e, assim haveria de romper a estrutura predatória do capitalismo. Por conta de suas críticas, as autoridades, por um determinado tempo, suspeitaram que ele era ligado ao Partido Comunista.

Todavia, muitos se podem questionar o Profeta Gentileza por pensar que este foi muito simplório por apresentar à sociedade que com gestos gentis e agradecidos poderão mudar a ordem social marcado por injustiças e de engessamento à alma humana. Porém, afirmar que ele não seguia uma linha de raciocínio, incorre-se numa limitação em que apenas enxerga a verdade humana no âmbito da visão do método analítico e, não se amplia para uma observação mais extensa do movimento dinâmico do espírito, em que as palavras e as artes do Gentileza se permitiram alcançar.

Do Profeta Gentileza se pode constatar que o desenvolvimento dos estudos e títulos acadêmicos são importantes, porém, não somente quem possui títulos obtêm conhecimentos e leem a realidade social que nos cerca. E, assim fiquemos com sua principal frase: gentileza gera gentileza.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

AMOR HUMANO PODE SER DIVINO?


Um sentimento difícil de se definir é o amor. E, há quem afirme que ele não é simplesmente um sentimento, mas também, uma atitude de vida e força de atração intensa para algo ou alguém. O que não pode haver é confusão com emoção. As emoções são múltiplas e confusas que experimentamos no decorrer dos dias de nossa vida; mas o amor se mantém solidificado em meio às turbulências emocionais que fazem parte de nossas contingências. Há pensadores que afirmam que o fato do amor ser atração intensa em possuir o objeto amado, inevitavelmente causa sofrimento ao espírito humano até pela sensação de ameaça de afastamento e/ou perda desse mesmo objeto. Talvez essa linha de pensamento ilumine a busca de respostas do motivo da condição da vida humana ser atravessada pela fadiga e dor, apesar dos sonhos intensos de felicidade.
Porém, o que pretendo tratar nesta reflexão é da experiência de amor na relação do divino com o humano que a Sagrada Escritura retrata em suas inúmeras passagens. Falar de amor na Sagrada Escritura se pode tornar um tema controvertido, pois muitas pessoas frisam das narrativas bíblicas os fenômenos que evidenciam a ira e o rancor divino pesando sobre a vida dos seres humanos. Essa temática de amor x ódio do ser divino poderá render um grande debate. Entretanto, deixemos para uma outra ocasião. Neste texto o foco ficará sobre o tema do amor.
E, para mostrar essa rica experiência a narrativa do primeiro capítulo do livro do Gênesis é muito sugestivo. Nele retrata ordenamento de Deus para que se faça a natureza e todo o universo. Após o mundo se tornar um local habitável para que a vida humana seja possível, Deus, por fim, ordena que homem e a mulher sejam feitos como sua imagem e semelhança. E, assim foi feito esses seres inteligentes, num mundo de possibilidades deles também criar meios para conservar a vida de sua espécie. Porém, hoje é conhecido que muitas escolhas humanas em dominar a natureza causaram diversos desastres ecológicos. E, a ânsia de uns dominar os outros originaram armamentos que ameaçam até a possibilidade desse mundo se manter como ambiente habitável para vida de homens e mulheres. Colocando em xeque que tudo isso é bom e muito bom, como foram as palavras proferidas pela boca de Deus
Retomando a Sagrada Escritura, encontra-se exemplificações da relação do divino com o ser humano como uma aliança esponsal, em que o comprometimento de fidelidade é fundamental para manutenção da integridade dessa relação. Há narrativas que apresentam as atitudes corrompidas e criminosas dos seres humanos como infidelidade à aliança com Deus, comparado como a infidelidade da esposa para com o marido. Dessa experiência se revela um gesto intrigante do amor, que se passa pelo perdão concedido por Deus da infidelidade sofrida e, que acolhe novamente ao convívio esponsal aquelas pessoas que lhe traíram para reconstruir a convivência harmoniosa. Há a comparação de amor maternal que não abandona seu filho mesmo em condições de indigência e, outras mais que podem ser exemplificadas para tratar de fatos semelhantes.
Também se pode encontrar no Novo Testamento exemplos que falam da relação do amor divino ao humano. E, aquele que é o maior paradigma para a confissão de fé dos seguidores de Jesus Cristo: o reconhecimento de que ele é filho de Deus, que tendo a natureza divina se encarnou como ser humano em toda sua contingência, para amar e sofrer as mesmas agruras da condição da natureza humana. E, muitos ensinamentos o divino humano, Jesus, foram registrados pelos evangelistas. E, desses podemos usar como exemplos da atitude de amor as passagens em que aponta a acolhida das crianças como pré-condição de recepção da acolhida do Reino dos Céus, e a sua identificação com os indigentes.
Quando Jesus disse para deixar as criancinhas dele se aproximar, reunido diante de uma multidão que as enxotavam, porque delas é o Reino dos Céus que significado tem essa afirmação? É comum nos púlpitos das igrejas os pregadores interpretarem esta passagem bíblica a destacar a natureza infantil como inocente, e as crianças cobertas por uma áurea pura e um espírito aberto para sofrer as influências do meio em que vivem. Entretanto, há um ponto de vista que pouco se é levado em conta em muitas pregações: os maus tratos e extermínios de crianças muito comum no tempo e na sociedade em que viveu Jesus.
No tempo em que Jesus habitou esse mundo, a sociedade no qual fez parte não era muito afetuoso com as crianças. Muitas delas sofriam maus tratos e chegavam mesmo a falecer. Essa realidade não causava muita comoção como no tempo atual e, inconcebível era a ideia de direitos da criança e do adolescente. O poder constituído não se preocupava em aplicar punição para as pessoas que cometiam essas atrocidades e, as crianças eram seres tão desprovidas de proteção que ninguém sentia simpatia em desejar voltar ao tempo infantil. E, como gesto desse amor divino, Jesus disse para deixá-las aproximar dele, afirmando que delas é o Reino dos Céus e afirmou ainda mais: que para receber a recompensa de entrar nesse reino deve uma criança se tornar.
Seguindo para o capítulo 25 do Evangelho de Mateus, encontra-se a narrativa em que Jesus bendize as ovelhas e as chama para junto de si, recompensando-as por terem socorridos os indigentes em suas necessidades; e maldiz os cabritos e os afasta de sua presença por estas não terem atendidos os indigentes em sua miséria. O amor manifestado nesta narrativa como revelação de que o divino é cada pessoa, em sua pobreza e miséria e por isso Jesus afirma que atender a necessidade do indigente, dando-lhe alento e dignidade é a ele próprio que se acolhe.
Diante dessa narrativa do livro sagrado dos cristãos é legítimo apresentar as seguintes indagações? Se sim, podemos seguir adiante a refletir sobre o amor divino com os questionamentos abaixo para nós, seres humanos:
Será que há a possibilidade desse mesmo amor ser transposto para a relação entre as pessoas humanas em nosso cotidiano? Há a possibilidade de ver o divino em outras pessoas? Parece ser simples, mas como vivemos num ambiente social conflituoso em que há constantes divergências, em que diversos desentendimentos de definir a divisão de ocupação de espaços sociais surgem diariamente, desde espaços de quarteirões dos bairros urbanos e pedaços de terras rurais, até a explorações de riquezas do solo por diversas nações do mundo; disputa por legitimidades de posições ideológicas como verdadeiras, aumento frequente de acirramento de competições como ato de sobrevivência, numa guerra de todos contra todos que não se poupa nem as relações dos membros de uma mesma família.
Portanto, falar para as pessoas ver o divino nas outras, inclusive em seus desafetos pode ser interpretado como uma norma ofensiva e, despertar dores que poderiam se encontrar adormecidas ou cicatrizadas na interioridade de muitas destas mesmas pessoas.
Essa questão talvez seja o grande enigma de atitude de vivência da fé cristã.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

COMPETIÇÃO HUMANA DE CADA DIA


A sociedade vive em constante competição. Em cada lugar e situação se torna propício para estourar uma disputa entre as pessoas para quem pode se impor seu poder, força e astúcia sobre os oponentes. Se disputam assentos nos transportes públicos, primeiro posto nos atendidos em repartições públicas, possuir as melhores roupas e aparelhagens eletrônicos e digitais, atrair mais curtidas nas redes sociais, etc. Os combates se misturam em várias habilidades esportivas aplicadas nos meios urbanos, em que se valem da força física ou da astúcia para se conseguir o que se deseja, mesmo que seja necessário atropelar as regras de convivência social.

Entre milhares de arenas espalhadas por este mundo, talvez pelo universo (pode ser que haja semelhantes competições em outros planetas), num bairro da Zona Sul de São Paulo, há uma galeria que em seu interior se encontra instalada uma casa lotérica. Nesse estabelecimento as pessoas recorrem para pagar suas contas por meio de boletos, comprar jogos e realizar apostas. Durante os dias uteis e aos sábados, os portões da galeria são abertos as 9 horas e, muitas pessoas já se encontram aglomeradas aguardando esse momento como um sinal de partida de uma frenética corrida maluca. Curioso é o período que precede a abertura dos portões, pois, as pessoas vão chegando e serenamente formam filas e trocam palavras uns com os outros. Desde opiniões superficiais da situação política a temas triviais, só mesmo para espantar a ansiedade de aguardar o momento derradeiro do acesso liberado à galeria.

Mas, ao chegar a hora marcada os portões são abertos. Essas pessoas começam disputar entre si, numa corrida frenética, almejando ser o primeiro a ser atendido por uma das atendentes da caixa lotérica. Não há distinção de modalidades: são jovens e idosos, homens e mulheres que guerreiam entre si, utilizando das habilidades e astúcias que possuem para passar por cima dos outros. Essa concorrência promove uma cena tão animalesca que causa aos espectadores desavisados um espanto. Alguns destes se questionam: os humanos não evoluem mais? Estão regredindo? Talvez, o Planeta Terra está sendo construído para as pessoas viverem o eterno combate de todos contra todos.
Nesse combate humano, se percebe que muitos casos cruentos ocorrem cotidianamente: brigas no trânsito, homicídios em nome da defesa da honra por conta da infidelidade conjugal da parceira ou do parceiro, disputas de namorados, divergências em respeitar o espaço alheio, e outros milhares de exemplos que poderão ser dados numa conta quase infinita. Para ilustrar essa reflexão há um fato que se tornou manchete de jornais, o noticiário de um ataque cruento de um menino de 9 anos que matou um adolescente de 12 anos a paulada, por ser constantemente ser por este ofendido ao ser chamado de caolho.

Esta situação não deixa de ter perpassado uma competição. Nesse mundo de culto à beleza corporal e a valorização da aparência, fomenta-se entre as pessoas a disputa para se mostrar quem se apresenta com o corpo mais “esbelto” e “perfeito”. Sendo que essa perfeição as pessoas não alcançam, muitos apelam para ocultar a frustração apontar algum traço do outro como fora de simetria do padrão da beleza imposta, como forma de o inferiorizar, até expor ao outro ao ridículo e, sentir prazer com a humilhação alheia, em o rebaixar.Essas propagandas de receitas que prometem emagrecimentos, rejuvenescimento do corpo, aumento da potência sexual trazem para a nossa sociedade mais danos a já conturbada relação humana contemporânea do que cultivo do espírito fraterno entre as pessoas.

E, assim segue a humanidade, perdida em sua forma e identidade entre as esquinas e espaços públicos nos centros urbanos, se digladiando mutuamente, hipnotizados por mundo fantástico do aparentar e da felicidade de invólucro e artificialidade de expressão, em que se compete de forma animalesca até um lugar para tomar sol, mesmo esse nascendo para todos e, a todos torrar com seus raios ultravioleta. Para não ser tão pessimismo, nele há vitamina D, importante para o corpo humano. Talvez seja essa vitamina o grande prêmio a quem vencer essa guerra.


É OU PARECE SER

A vida e suas disputas. Hoje me vi cantando uma canção de Renato Russo que diz que tudo que é demais não é o bastante, que a primeira vez é ...