Pela
janela, com o olhar perdido no horizonte, eu vejo que a Justiça
vagueia com seus olhos tapados com um lenço, e com a visão ausente
de luz e, com a razão deturpada, a buscar inutilmente um local para
aconchegar-se e fincar raiz para se estabilizar. Em vão os
miseráveis clamam pela Justiça ou pela Morte. Esta, acostumada a
seguir apenas os seus próprios caprichos, só se aproxima das
pessoas quando melhor te apetece. E, muitas vezes ela se apresenta
para as pessoas quando não mais as querem por perto. Nada faz
demovê-la de suas viagens, e ela transita e se hospeda na vida dos
homens e das mulheres conforme sua vontade. De personalidade
egocêntrica e individualista, sente que em suas veias correm
suavemente a liberdade plena de ir, vir e permanecer sem necessidade
de passaporte e visto. Ela mesma é sua regra e, não há ninguém
quem a possa importunar.
Olhando
a paisagem pela janela da grande sala, cercada de computadores e
outros aparelhos tecnológicos da vida contemporânea, frutos da
engenhosidade e inteligência humana, vejo um terreno elevado coberto
de gramas. Ah! Essa visão me remete ao tempo de minha infância.
Aquela fase infantil mais saborosa em que me sentia protegido
habitando no Jardim do Éden- ao menos era assim que me via, como um
habitante deste jardim- entre as árvores frutíferas, extensões de
terras gramadas e água fresca que a fonte me proporcionava. Conforme
o ciclo da natureza, as árvores me presenteavam com suas frutas, que
por mim eram colhidas para satisfação de meu corpo e de meu
espírito. Nesse encanto, a vida corria inocente e fraternal, num
tempo em que o Mundo
não havia se apresentado diante de mim em sua verdadeira face,
obscura e horrorosa, de miséria e de indigência, que marcou o
despertar da outra fase da infância.
A
recordação do Jardim do Éden, que numa localidade havia um
barranco, que por estar coberto de gramas se tornava para as crianças
uma pista de tobogã. Com um pedaço de papelão, na medida
suficiente para sentar e segurar, na parte dianteira, as mãos eu e
meus amigos de infância, escorregávamos velozmente, numa adrenalina
que nos enchia de bem estar e felicidade. Ao chegar na planície,
imediatamente subíamos para repetir essa aventura até ao
esgotamento. Às vezes ficávamos a brincar até ao anoitecer, que
nesse movimento terrestre a luz do sol se enfraquecia e permitia as
trevas ocupar toda a extensão do Jardim do Éden.
Mas,
o tempo é um senhor que se torna um fardo imposto pela necessidade
humana de se organizar em sociedade. Os homens e as mulheres têm
essa necessidade de organização de suas funções no grupo, de
definição dos papéis a
encenar e de
seguir uma disciplina de vida, para que a convivência entre si,
membros de uma mesma espécie e semelhança com o divino,
seja possível.
E,
retornando ao paraíso da primeira infância, eu recordo
que num determinado momento de minha existência passei a ter ciência
que o Jardim do Éden não era minha propriedade. Ela é uma pátria
estrangeira; e não me pertencia e nem pertencia a minha família. Eu
a habitava por concessão dado
pelos seus verdadeiros
proprietários: seres afortunados que exalavam perfumes que lhes
davam características de seres divinos. E, foi uma experiência
traumática ter que partir e, não ter mais a proteção e
comodidades que este jardim me regalava. Não houve pecado original,
como foi a história de
vida do miserável Jó.
Essa
terra que me regalou com ricas experiências alegres e prazerosas, de
proteção e felicidade durante uma parte da fase infantil, se tornou
uma saudade e um desejo de lá poder voltar e, enraizar-me em seu
solo para me estabilizar em seu chão. Mas, a vida não me deu essa
permissão. Uma vez que do Jardim do Éden se parte, não mais para
ele se
retorna.
No
dia em que desse jardim fui retirado, desta terra que acreditei ser
meu foi um duro golpe ao meu espírito infantil. E, a segunda parte
dessa fase da vida irrompeu-se às minhas vistas. Se pudesse eu
ataria meus olhos com o mesmo lenço que a Justiça a utilizou para
não mais ver. Porém,
esse direito não me foi concedido. Então, eu vi o que não desejava
ver e, pisei um solo no qual não queria que meus pés tocassem. O
sol me negou a sua luz e as árvores frutíferas recusavam-me
presentear suas frutas. Nesse momento eu vi o Mundo e me angustiei.
Desse dia em diante, Angústia me vem visitar quando sente saudades
de mim. Com o passar do tempo, fui me adaptando às visitas dela em
minha casa. Ela gosta de saber como anda minha história
e como vou vivenciando os
dias e os anos de minha existência.
E,
como não havia como desviar o olhar do Mundo, nele eu descobri que
pessoas vivem privadas das benesses e comodidades regaladas pelo
Jardim do Éden. Eu vi que há crianças que choram por não terem
pão para saciar a fome; que há crianças violentas, que xingam,
agridem e roubam objetos alheios; que há crianças que agem com
astúcias para angariar vantagens sobre as demais. Essa era a nova
visão da infância que se apresentava a mim. Provocou em minha
pessoa uma crise que não mais me deixou.
Eu
vi que há pessoas que abrigam seus corpos miseráveis sob casas de
madeiras arruinadas, em companhias de bichos peçonhentos e insetos
como ratos, baratas, carrapatos, moscas, mosquitos, e outras mais. Eu
também vi que a exploração do ser humano sobre o outro é real e,
em alguns casos sem limites para atitudes escrupulosas motivadas pela
valorização do poder e
da moeda sobre todas as
coisas. E, vi que o ser humano é capaz de desenvolver um espírito
de frieza para retirar a vida de outrem. E, após a ver tantas outras
coisas mais, descobri que
não é mais possível retornar ao Jardim do Éden. Eu desejei
retornar, mas seus portões estão fechados para não mais se abrir
aos que de lá já partiram.
Todavia,
o Mundo recebe fragmentos do Jardim do Éden. Quando há ventanias e
tempestades esses fragmentos ora por meio do vendaval, ora pelas
correntezas d’águas são
transportadas
até nós, que habitamos em outras terras. Elas são as alegrias que
experimentamos em alguns momentos de nossa existência, mesmo
fora desse jardim fértil. Em meio as trevas que há no Mundo, há
brilhos de luz que vem das
grades dos portões do
Jardim do Éden e, reluzindo
algumas partes ao outro lado,
se implantam
no interior do espírito humano. Esses
brilhos de luz, como
faíscas, acendem
uma chama de sentimento intenso. Por isso, experimentamos o amor.
Assim, eu vi e descobri que mesmo aqui, no Mundo eu vivencio também
amor entre tantas visões
aterrorisadoras.
E,
assim pela janela eu vi minha própria infância, o fundamento de
toda minha existência.