Um
sentimento difícil de se definir é o amor. E, há quem afirme que
ele não é simplesmente um sentimento, mas também, uma atitude de
vida e força de atração intensa para algo ou alguém. O que não
pode haver é confusão com emoção. As emoções são múltiplas e
confusas que experimentamos no decorrer dos dias de nossa vida; mas o
amor se mantém solidificado em meio às turbulências emocionais que
fazem parte de nossas contingências. Há pensadores que afirmam que
o fato do amor ser atração intensa em possuir o objeto amado,
inevitavelmente causa sofrimento ao espírito humano até pela
sensação de ameaça de afastamento e/ou perda desse mesmo objeto.
Talvez essa linha de pensamento ilumine a busca de respostas do
motivo da condição da vida humana ser atravessada pela fadiga e
dor, apesar dos sonhos intensos de felicidade.
Porém,
o que pretendo tratar nesta reflexão é da experiência de amor na
relação do divino com o humano que a Sagrada Escritura retrata em
suas inúmeras passagens. Falar de amor na Sagrada Escritura se pode
tornar um tema controvertido, pois muitas pessoas frisam das
narrativas bíblicas os fenômenos que evidenciam a ira e o rancor
divino pesando sobre a vida dos seres humanos. Essa temática de amor
x ódio do ser divino poderá render um grande debate. Entretanto,
deixemos para uma outra ocasião. Neste texto o foco ficará sobre o
tema do amor.
E,
para mostrar essa rica experiência a narrativa do primeiro capítulo
do livro do Gênesis é muito sugestivo. Nele retrata ordenamento de
Deus para que se faça a natureza e todo o universo. Após o mundo se
tornar um local habitável para que a vida humana seja possível,
Deus, por fim, ordena que homem e a mulher sejam feitos como sua
imagem e semelhança. E, assim foi feito esses seres inteligentes,
num mundo de possibilidades deles também criar meios para conservar
a vida de sua espécie. Porém, hoje é conhecido que muitas escolhas
humanas em dominar a natureza causaram diversos desastres ecológicos.
E, a ânsia de uns dominar os outros originaram armamentos que
ameaçam até a possibilidade desse mundo se manter como ambiente
habitável para vida de homens e mulheres. Colocando em xeque que
tudo isso é bom e muito bom, como foram as palavras proferidas pela
boca de Deus
Retomando
a Sagrada Escritura, encontra-se exemplificações da relação do
divino com o ser humano como uma aliança esponsal, em que o
comprometimento de fidelidade é fundamental para manutenção da
integridade dessa relação. Há narrativas que apresentam as
atitudes corrompidas e criminosas dos seres humanos como infidelidade
à aliança com Deus, comparado como a infidelidade da esposa para
com o marido. Dessa experiência se revela um gesto intrigante do
amor, que se passa pelo perdão concedido por Deus da infidelidade
sofrida e, que acolhe novamente ao convívio esponsal aquelas pessoas
que lhe traíram para reconstruir a convivência harmoniosa. Há a
comparação de amor maternal que não abandona seu filho mesmo em
condições de indigência e, outras mais que podem ser
exemplificadas para tratar de fatos semelhantes.
Também
se pode encontrar no Novo Testamento exemplos que falam da relação
do amor divino ao humano. E, aquele que é o maior paradigma para a
confissão de fé dos seguidores de Jesus Cristo: o reconhecimento de
que ele é filho de Deus, que tendo a natureza divina se encarnou
como ser humano em toda sua contingência, para amar e sofrer as
mesmas agruras da condição da natureza humana. E, muitos
ensinamentos o divino humano, Jesus, foram registrados pelos
evangelistas. E, desses podemos usar como exemplos da atitude de amor
as passagens em que aponta a acolhida das crianças como pré-condição
de recepção da acolhida do Reino dos Céus, e a sua identificação
com os indigentes.
Quando
Jesus disse para deixar as criancinhas dele se aproximar, reunido
diante de uma multidão que as enxotavam, porque delas é o Reino dos
Céus que significado tem essa afirmação? É comum nos púlpitos
das igrejas os pregadores interpretarem esta passagem bíblica a
destacar a natureza infantil como inocente, e as crianças cobertas
por uma áurea pura e um espírito aberto para sofrer as influências
do meio em que vivem. Entretanto, há um ponto de vista que pouco se
é levado em conta em muitas pregações: os maus tratos e
extermínios de crianças muito comum no tempo e na sociedade em que
viveu Jesus.
No
tempo em que Jesus habitou esse mundo, a sociedade no qual fez parte
não era muito afetuoso com as crianças. Muitas delas sofriam maus
tratos e chegavam mesmo a falecer. Essa realidade não causava muita
comoção como no tempo atual e, inconcebível era a ideia de
direitos da criança e do adolescente. O poder constituído não se
preocupava em aplicar punição para as pessoas que cometiam essas
atrocidades e, as crianças eram seres tão desprovidas de proteção
que ninguém sentia simpatia em desejar voltar ao tempo infantil. E,
como gesto desse amor divino, Jesus disse para deixá-las aproximar
dele, afirmando que delas é o Reino dos Céus e afirmou ainda mais:
que para receber a recompensa de entrar nesse reino deve uma criança
se tornar.
Seguindo
para o capítulo 25 do Evangelho de Mateus, encontra-se a narrativa
em que Jesus bendize as ovelhas e as chama para junto de si,
recompensando-as por terem socorridos os indigentes em suas
necessidades; e maldiz os cabritos e os afasta de sua presença por
estas não terem atendidos os indigentes em sua miséria. O amor
manifestado nesta narrativa como revelação de que o divino é cada
pessoa, em sua pobreza e miséria e por isso Jesus afirma que atender
a necessidade do indigente, dando-lhe alento e dignidade é a ele
próprio que se acolhe.
Diante
dessa narrativa do livro sagrado dos cristãos é legítimo
apresentar as seguintes indagações? Se sim, podemos seguir adiante
a refletir sobre o amor divino com os questionamentos abaixo para
nós, seres humanos:
Será
que há a possibilidade desse mesmo amor ser transposto para a
relação entre as pessoas humanas em nosso cotidiano? Há a
possibilidade de ver o divino em outras pessoas? Parece ser simples,
mas como vivemos num ambiente social conflituoso em que há
constantes divergências, em que diversos desentendimentos de definir
a divisão de ocupação de espaços sociais surgem diariamente,
desde espaços de quarteirões dos bairros urbanos e pedaços de
terras rurais, até a explorações de riquezas do solo por diversas
nações do mundo; disputa por legitimidades de posições
ideológicas como verdadeiras, aumento frequente de acirramento de
competições como ato de sobrevivência, numa guerra de todos contra
todos que não se poupa nem as relações dos membros de uma mesma
família.
Portanto,
falar para as pessoas ver o divino nas outras, inclusive em seus
desafetos pode ser interpretado como uma norma ofensiva e, despertar
dores que poderiam se encontrar adormecidas ou cicatrizadas na
interioridade de muitas destas mesmas pessoas.
Essa
questão talvez seja o grande enigma de atitude de vivência da fé
cristã.
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